quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

O universo ideológico da obra "A bolsa amarela", por Patrícia Paculski

Autora da obra “A Bolsa Amarela”, Lygia Bojunga Nunes, nasceu em Pelotas. Mudou-se, aos oito anos, para o Rio de Janeiro com sua família. Lá, a autora pretendia estudar medicina, porém dedicou-se para o teatro após ter conquistado o primeiro lugar em teses que Pascoal Carlos Magno realizava no teatro Duse em Santa Tereza. Trabalhou como atriz durante dois anos, depois, trabalhou em rádio e em seguida à televisão (escrevia textos, traduzia, adaptava e representava).
Em 1964, a autora mudou-se para um vale, no estado do Rio de Janeiro, pois queria viver mais “próxima” da natureza. Nesse local, o marido e ela fundaram uma pequena escola rural, os quais a mantiveram durante cinco anos. Em 1979, a autora muda-se com o marido para a Inglaterra, porém mantiveram sua residência no Rio de Janeiro.
A autora revela-se na literatura infanto-juvenil, ou seja, a sua literatura é destinada para o público pré-adolescente e adolescente. Ela é acolhida tanto pelo público leitor quanto pelos críticos, em sua estréia em 1972. A partir daí, a escritora foi consagrada uma das mais respeitadas autoras da literatura infanto-juvenil, tendo todos os seus títulos premiados ou recebido distinções de honra.
Em 1982, o IBBY (International Board on Books for Young People) concede-lhe o prêmio Hans Christian Andersen (um dos maiores prêmios da literatura infanto-juvenil), sendo a primeira escritora fora do eixo Europa-EUA a ganhar esse “nobel” da literatura infanto-juvenil. Outro prêmio que a autora ganhou pelo conjunto de obras é o ALMA (Astrid Lindgren Memorial Award), em 2004, que é o maior prêmio internacional jamais instituído na literatura para crianças e jovens.
A escritora cria um novo “modelo” na literatura infato-juvenil. Seus assuntos abordam problemas existentes nas relações humanas. Seus livros possuem muito do lúdico-crítica, discutem a realidade dos papéis sociais, procurando mostrar ao leitor que nossa vida não está pré-determinada.
A autora também publicou outras obras, tais como: Os colegas, Angélica, A Casa da Madrinha, A Corda Bamba, O Sofá Estampado, O Meu Amigo Pintor, Tchau, Nós Três e Feito à mão. Porém, nesse trabalho será analisada somente a obra “A Bolsa Amarela”.
A obra é um romance, que conta a história de Raquel, a filha caçula da casa. Seus irmãos tinham 10 anos de diferença, não lhe davam atenção porque achavam que criança nunca sabia de nada. Sendo assim, Raquel (que é uma menina inteligente, divertida e muito observadora) começa escrever para seus amigos imaginários porque se sente muito solitária e incompreendida. Ela tinha três vontades e queria escondê-las – a de querer ser gente grande, nascer menino e de se tornar uma escritora. Porém não achava lugar algum. Então, um dia ela “ganha” uma Bolsa amarela (ganha porque ninguém tinha gostado da bolsa). Ao abrir a bolsa, Raquel (a personagem e narradora da história) se encanta ao ver que na bolsa caberia todas as suas vontades. Sendo assim, guarda em cada bolso as suas vontades, inclusive um alfinete de fraldas e os nomes que ela gostava. Fazendo da bolsa um esconderijo para todas as suas vontades e invenções.
Porém, entre todas essas vontades que ela queria esconder, uma vontade estava ao seu alcance: de ser escritora, nem que fosse só para treinar. Escrevendo algumas cartas, enfim, fingindo que era escritora. A partir daí, começam as histórias engraçadas e comoventes da nossa personagem principal, para a qual se torna difícil separar o real com o imaginário.
Essa característica da mistura com o real e o imaginário faz com que a obra tenha uma linguagem metafórica, a qual se dá o valor de literatura lúdica.
Para Raquel, escrever e inventar seria como se fosse uma fuga dessa realidade incompreensível em que vivia. Sendo assim, ela reinventa um novo universo para uma melhor compreensão e relação com o mundo real, apresentando o perfeito equilibro entre a liberdade do imaginário e as restrições do real.

“...a imaginação, a fantasia (presente nos Mitos e na Literatura) é acima de tudo a atividade criativa na qual podemos encontrar as respostas para todas as perguntas que podem ser respondidas: ela constitui a origem de todas as possibilidades do viver.” (C.G. Jung. 1962 apud COELHO, Nelly Novaes. 2000 )

É nesse sentido que a literatura é um dos grandes meios de busca e conhecimento, pois além de ter como matéria-prima a palavra (aquilo que define o humano em relação ao animal) ela é o ato criador que transfigura a realidade da vida em arte.
Um aspecto muito marcante na obra é como a família da menina a vê perante suas invenções e, que sempre joga “um balde de água fria” em sua imaginação. Uma família em que a voz da menina não é ouvida e, ser for ouvida, certamente vem a repressão para ficar calada.
É interessante como a autora aborda temas que vão ao encontro do universo da criança com o mundo adulto. O livro oferece ao leitor uma visão clara dos comportamentos sociais e convida o leitor a uma caminhada que vai da fantasia até a realidade.
Um dos assuntos principais da narrativa é a autoridade dos adultos, sendo mostrada por uma visão infantil, com seus medos e angústias. Os questionamentos de Raquel sobre os comportamentos dos adultos em que todos agradam alguém em busca de algo que os interessem. Ou até mesmo a “valorização” do homem, a desigualdade que há entre os sexos, o qual tem muita ênfase na história por ser uma das vontades de Raquel (queria nascer homem porque o homem pode tudo).
Na obra, há muitos trechos que falam dessa desigualdade entre os sexos, porém destacaremos um trecho:

“- Porque eu acho muito melhor ser homem do que mulher. [...] Vocês podem um monte de coisa que a gente não pode. Olha: lá na escola, quando a gente tem que escolher um chefe pras brincadeiras, ele é sempre um garoto. Quem nem chefe de família: é sempre um homem também. Se eu quero jogar uma pelada, que é o tipo de jogo que eu mais gosto, todo mundo faz pouco de mim e diz que é coisa pra homem, se eu quero soltar pipa, dizem logo a mesma coisa. É só a gente bobear que fica burra: todo mundo ta sempre dizendo que vocês é que tem que meter as caras no estudo, que vocês é que vão ser o chefe de família, que vocês é que vão ter responsabilidade, que puxa vida! – vocês é que vão ter tudo. Até pra resolver casamento – Então eu não vejo? [...] Eu acho fogo ter nascido menina”. (p. 16-17)

Outro assunto que não podemos esquecer é que “A Bolsa Amarela” foi publicada em 1976 – época da ditadura. Na obra aparece uma crítica à sociedade. Mas por que fazer essa crítica logo em um livro infantil? Segundo a autora, os generais não liam livros para crianças. Essa discussão aparece com o galo Terrível – o galo de briga. Seus donos costuraram seu pensamento, deixando apenas espaço para o pensamento “Eu tenho que brigar”, conforme o trecho abaixo:

“Desde pequenininho que resolveram que ele ia ser galo de briga, sabe? [...] Você sabe como é esse pessoal, querem resolver tudo pra gente. E aí começaram a treinar o Terrível. Botaram na cabeça dele que ele tinha que ganhar de todo mundo. Sempre. Disseram até, não sei se é verdade, é capaz de ser invenção, que costuraram o resto do pensamento dele com uma linha bem forte. Pra não arrebentar. E pra ele só pensar: ‘eu tenho que ganhar de todo mundo’, e mais nada”. (p. 55-56)

Outro assunto abordado na obra é o combate dos preconceitos nos relacionamentos. Isso fica claro quando a Guarda-chuva quer ser a companheira do galo Afonso, sendo que eles não têm nada em comum.
Para a aceitação desse tipo de acontecimento, Marta Yumi Ando (2005) “afirma que o leitor deve efetivar um pacto de leitura, deixando de lado a descrença dos fatos”.
De acordo com Lígia Cademartori (2005), “o romance ‘A Bolsa Amarela’ permite a adesão ao mundo ficcional pela condução do enredo e pelo desfecho, permitindo a cartase do seu leitor, propiciando uma identificação, uma descarga emocional”.
Os espaços citados na obra, conforme Silva (2001), são chamados de espaços abertos (a praia, o mar) e fechados (a bolsa, o barco, a casa, a escola) e também espaços de fronteiras de entre os espaços abertos e fechados (portas e janelas). Esses espaços apresentam também espaços urbanos, naturais e sociais; e de outro, espaços simbólicos e fantásticos. Esses espaços não exercem a função de cenário, mas às vezes, comportam leituras simbólicas, relacionadas às situações que a personagem está vivendo.
Não há uma descrição detalhada dos espaços por onde os personagens passam, cabendo ao leitor imaginar os detalhes que a história não fornece. Não que isso possa ser visto como defeito, pelo contrário, isso faz com que a imaginação do leitor seja impulsionada a uma participação na história.
O tempo não segue uma linearidade na narrativa. Segundo Marta Yumi Ando (2005), “na narrativa em estudo, a omissão temporária de dados faz com que se amplie o poder sugestivo da obra, o que mobiliza, na consciência leitora, a imaginação de hipóteses para o preenchimento dos espaços vazios”.
Algo muito interessante é que, ao ver o desenho na capa, logo pensamos que a história vai tratar de falar de algum objeto (no caso, uma bolsa) ou que ele exerça o papel principal na história. É claro que a bolsa tem um papel importante, mas a personagem principal é a Raquel.
Por ser uma obra para um público infantil, em torno de 9 a 12 anos, acredito que o livro peque na extensão. Crianças nessa faixa etária buscam ler livros curtos, mas no momento em que o leitor tiver contato com a obra, certamente o prenderá até o fim.
A linguagem na obra é algo bem chamativo, havendo aglutinações em algumas palavras e termos típicos da oralidade do brasileiro (rompendo com as normas tradicionais da linguagem na literatura).
Para exemplificar, citamos um trecho da obra:

“Quando o pessoal me viu carregando aquele peso, eles disseram que eu tava maluca: eu não podia ir pro almoço levando uma bolsa enorme, ridícula, de gente grande, e não sei que mais. [...] Eu guardo aqui dentro umas coisas muito importantes. Umas coisas que eu ainda não tô podendo nem querendo mostrar pra ninguém”. (p. 68).

Podemos perceber nesse trecho a adaptação da linguagem para o universo infantil.
A estrutura da obra segue com capítulos curtos (não seguem uma seqüência cronológica). Essa estrutura é bem complexa, pois é composta por fragmentos confessionais (narrado em 1° pessoa) cartas, diálogos e romances escritos pela Raquel, ou seja, histórias na história, com inúmeros flash-backs e interrupções. Isso faz com que o leitor se prenda até ao fim do livro.

A particularidade mais geral e fundamental deste processo de comunicação é a desigualdade entre os comunicadores, estando de um lado o autor adulto e de outro o leitor infantil. Ela diz respeito à situação lingüística, cognitiva, status social. Para mencionar os pressupostos mais importantes da desigualdade. O emissor deve desejar conscientemente a demolição da distância preexistente, para avançar na direção do recebedor. Todos os meios empregados pelo autor para estabelecer uma comunicação com o leitor infantil podem ser resumidos sob a denominação de adaptação. (LYPP, Maria. p. 165 apud ZILBERMAN, Regina. 2000, p.19)

Nessa citação, Lypp nos fala da necessidade da adaptação na literatura infantil. Isso quer dizer que as adaptações são necessárias para que diminua o afastamento entre autor adulto e o leitor criança. Isso em uma obra vale para o assunto, a linguagem, a forma e as ilustrações.
A presença das ilustrações faz com que o livro seja atrativo, funcionando como um recurso visual ao leitor. Sendo assim, resulta em assimilação entre a história e a imagem. Na obra, as ilustrações de Marie Louise Nery são em preto e branco, mas ricas em detalhes.
Acredito que ainda ficou uma dúvida no “ar”: Por que o nome “A Bolsa amarela”? Segundo Raquel, amarelo é a cor mais bonita que existe. Não só a Raquel que acha isso, a autora também, por ser uma cor alegre e viva.
Como podemos ver, essa obra é riquíssima em detalhes. Cheia de imagens simbólicas, sendo possível uma outra interpretação conforme a perspectiva de cada leitor. Isso evidencia a concepção inovadora que a autora Lygia Bojunga Nunes tem em suas obras.







































REFERÊNCIAS


Ando, Marta Yumi. Os lugares vazios no sofá: leituras e releituras da obra lygiana. Disponível em: <http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/ActaSciHumanSocSci/article/ viewFile/195/143>. Acesso em: 4 dez 2007.



BOJUNGA, Lygia. A Bolsa Amarela. 34. ed. Rio de Janeiro: Casa Lygia Bojunga, 2007.


CARVALHO, Diógenes Buenos Aires de. Literatura Infanto-Juvenil, Leitura e ensino. Disponível em: <http://www.pucrs.br/edipucrs/pesquisa/ artigo5.html>. Acesso em: 4 dez 2007.


COELHO, Nelly Novaes. Dicionário crítico da literatura infantil e juvenil brasileira. 5. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2006.


GURGEL, Alexandro. O Objeto Mágico na Literatura Infantil. Disponível em: <http://www.natalpress.com/index.php?Fa=aut.inf_mat&MAT ID=9264&AUT_D=32>. Acesso em: 4 dez 2007.


SANDRONI, Laura. Universo ideológico de Lygia Bojunga Nunes. Disponível em: . Acesso em: 06 set 2007.


SOUZA, Helem. Lygia Bojunga Nunes: para "descosturar o pensamento". Disponível em: . Acesso em: 4 dez 2007.


ZILBERMAN, Regina; MAGALHAES, Ligia C. Literatura Infantil: autoritarismo e emancipação. São Paulo: Ática, 2000.


ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. São Paulo: Global, 1990.

Nenhum comentário: